A Justiça Itinerante Cooperativa atendeu 10 mil pessoas, emitiu documentação para mulheres trans e levou cidadania a moradores da região
Veja na íntegra o texto da jornalista Manoela Alcântara do site Metrópoles, divulgado em 29 de junho sobre a ação do CNJ. Um balanço dos atendimentos e conquistas de cidadão até então invisíveis para o Estado.
Cerca de 700 quilômetros, com estradas de terra e caminhos de barco, separam Humaitá e Lábrea de Manaus, capital do Amazonas. A mesma distância separou Irene Pedrosa, que perdeu mãos e pés devido ao agravamento da hanseníase, de obter seus benefícios do INSS; separou Antônia Maria de registrar a filha de dois meses, de ter a carteira de identidade e conseguir ajuda para o filho que tem epilepsia; e impediu mulheres trans de terem seus registros da maneira com a qual se identificam.
Por anos, elas e milhares de moradores aguardaram por atendimento, por um cartório, uma agência do governo na região que as tirasse da invisibilidade e lhes trouxesse cidadania. No fim do mês de junho, a esperança e a efetividade em mudar a total falta assistência chegou às cidades de Humaitá e Lábrea, no sul do Amazonas.
Uma ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reuniu mais de 50 instituições para oferecer serviços e acesso a cidadania e benefícios sociais. Juntos, o CNJ, o Conselho da Justiça Federal (CJF), o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), juntamente com órgãos do Sistema de Justiça e do Poder Executivo (federal, estadual e municipal), participaram, entre 17 e 21 de junho, do Programa Justiça Itinerante Cooperativa na Amazônia Legal.
A iniciativa surgiu da necessidade de ampliar a atuação do poder público em cidades marcadas pela dificuldade de locomoção. Nessa ação, foram realizados mais de 10 mil atendimentos, em Humaitá e Lábrea. Os serviços mais procurados foram previdenciários, de cartório, além de consultas médicas e odontológicas, feitas em parceria com o Exército Brasileiro.
Pessoas puderam ter acesso a documentos pessoais pela primeira vez, além de muitos outros que tiveram reconhecido o direito à aposentadoria, registro de terras e até ao nome social, que é o caso de seis mulheres transgêneros que puderam ser registradas como se identificam.
“A realidade de abandono do estado é muito impactante. Imagina uma agência do INSS que não tem perícia, e a pessoa precisa ir para Porto Velho ou Manaus, em um lugar onde as pessoas não têm recursos, uma passagem custa cerca de R$ 4 mil? As pessoas ali naquela região sentem a mão pesada do Estado em alguns sentidos, mas não sentem a chegada de seus direitos constitucionais”, afirmou Lívia Peres, juíza que comandou a ação de itinerância na região.
A juíza relatou que as pessoas dormiram na fila em busca dos serviços. “As pessoas precisam dessa atenção. O maior volume de procura foi de cartório, defensoria pública, INSS, atendimentos médicos. O mais importante dessa ação é a colaboração de diversos órgãos para que a pessoa saia dali com tudo o que precisa resolvido”, ressaltou Lívia Peres ao Metrópoles.
Hanseníase
Irene Pedrosa dos Santos tem 63 anos e perdeu as mãos e os pés devido a hanseníase, quando ainda tinha 15. Ela chegou a ter atendimento do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) entre 2002 e 2006, mas depois não recebeu mais os benefícios. Tentou a perícia e atendimento desde então, mas não tinha acesso.
Em alguns casos, os pedidos eram para que os documentos fossem enviados a Manaus. Nos últimos três anos, segundo relatou, chegou a receber alguns advogados, mas ela disse que não “confia em qualquer um” e que agora está feliz porque conseguiu. “Senti uma alegria e um alívio.”
Com ajuda para se locomover, Irene conseguiu o reconhecimento do benefício do INSS de imediato na ação Programa Justiça Itinerante Cooperativa na Amazônia Legal. Veja o depoimento dela:
Certidão de nascimento e ajuda
Antônia Maria buscou o atendimento da Justiça itinerante em 18 de junho. Em situação de extrema pobreza, Antônia chegou ao Colégio Cetti com fome, após percorrer um longo caminho de 180 quilômetros de estrada de chão da casa dela até o posto. Ela não tinha ficha de atendimento, mas decidiu tentar mesmo assim.
A mulher precisava tirar o RG e outros documentos, além de solicitar ajuda para o filho, que tem epilepsia, e fazer o registro da filha Lorena, de apenas dois meses. Serviços básicos, que em cidades grandes são feitos nas proximidades de casa ou até mesmo na maternidade, no ato do nascimento do bebê, só foram realizados porque a equipe multidisciplinar da Justiça Itinerante tinha todos os órgãos no mesmo lugar.
Ela conseguiu resolver tudo no mesmo lugar. “É o exemplo de tantas mulheres e homens aqui no Amazonas que vivem na extrema pobreza e abandono do poder público. Maria Antônia vive em um barraco e muitas vezes não faz uma refeição por dia. Já vi as crianças e ela chorando de fome sem ter nem o sal. Antônia, com certeza, hoje vai viver um pouco melhor com seus filhos e marido”, contou a irmã de Antônia, Ivonete Aparecida.
IDH
A Amazônia Legal é composta por nove estados ou 772 municípios, que enfrentam desafios geográficos e políticos para garantir o acesso aos serviços públicos essenciais à cidadania. Uma pesquisa publicada em 2023 pelo CNJ no âmbito do projeto Justiça Pesquisa, desenvolvida pela Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta que, em 2021, a Amazônia registrou 52% dos conflitos por terra no Brasil.
Os estados da Amazônia Legal apresentam Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) abaixo dos nacionais. Os IDHM do Pará de 2021 colocam o estado na 23ª posição entre os 27 estados brasileiros.
Lábrea e Humaitá estão mais próximas da capital de Rondônia, Porto Velho, do que da capital do Amazonas, Manaus, que fica a quase 700 quilômetros de distância. Os serviços oferecidos durante a Justiça Itinerante foram de emissão de documentos diversos; exercício de direitos previdenciários e trabalhistas; solução de questões fundiárias e ambientais; além de oficinas e rodas de conversa. O Exército Brasileiro ofereceu consultas com médicos e dentistas.
Registro para mulheres trans
Com a ação do CNJ e parceiros, o município de Lábrea ganhou seis novas cidadãs em 20 de junho. Seis mulheres trans emitiram documentação com nome e identidade de gênero com a qual se identificam. Jhully, Myrella, Chloe, Damy, Nashilla e Laylla emitiram novas certidões de nascimento durante audiência realizada por representantes do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJMA), do Ministério Público do Amazonas (MPAM) e da Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM).
A assistente social Francidalva Souza, que atua na Prefeitura de Lábrea, ressaltou que a nova documentação vai permitir que elas não precisem enfrentar constrangimentos do anúncio do nome original publicamente, enquanto aguardam atendimento em uma repartição pública, hospital ou agência bancária. “Espero mesmo que esse ato abra portas, que as novas certidões permitam o acesso a direitos como saúde, educação e empregos”, disse.
“Estou vivendo um misto de ansiedade com felicidade”, disse, sorrindo, durante a audiência, a entregadora de encomendas Myrella Oliveira de Souza. “Eu queria muito mudar meu primeiro nome, que me incomodava muito. Agora, tenho planos de atuar como atriz e como modelo, tudo o que eu não podia fazer antes por causa do meu antigo nome.” Myrella é filha única, a mãe trabalha como faxineira e ela perdeu o pai no ano passado.
As equipes ficaram à disposição da população em salas de duas escolas estaduais, durante ao menos 10 horas por dia, para a solução de demandas relativas às questões ambiental, previdenciária, trabalhista, regularização fundiária, indígena, de cidadania, documentação, da infância e da adolescência. Em Lábrea e Humaitá, a população teve acesso direto a servidoras e servidores públicos, que dispunham de condições para concluir todo o processo de atendimento em um dia, inclusive com a homologação de acordos pela Justiça, integrantes do Ministério Público e da Defensoria Pública.
Texto: Manoela Alcântara (Metrópoles)